quarta-feira, 4 de julho de 2007

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A escuridão desaparecera do quarto fazia já algumas horas, havia um qualquer brilho vindo da janela que pousava na pele branca. Rebolava pela cama com espaço para mais um corpo mas aquela hora permanecia apenas um. Ela gostava de viver nas noites, não que fizesse nada de se aproveitar. Embebedava-se, fumava charros, fingia um mau estar qualquer para ser o centro das atenções e nessas alturas já poucos a conseguiam resistir.

Chegava de mansinho a casa já de manhã com um saco de pão fresco. Esperava-lha a mulher, a namorada, a que lhe patrocinava as saídas nocturnas e as compras nas ruas do bairro alto. Tinham uma relação de pura dependência. A noctívaga era dependente do dinheiro, do perdão ás suas constantes facadinhas, ao abraço maternal que recebia ao chegar a casa. A mais velha era dependente do sexo, da choradeira exagerada à qual se seguiam sem falhar – Amo-te – Não consigo viver sem ti – Sou tua - Perdoa-me. O amor que ambas diziam sentir baseava-se nas dependências e na partilha pela arte. E assim iam sobrevivendo ano após ano.

Numa certa madrugada chegou a casa mais cedo, a mais velha ainda dormia e não havia pão fresco. Havia um horror sem nome que lhe consumia o peito. Empolgou-se pela cama, fez desaparecer lençóis e mergulhou no sexo do corpo esbatido pelo colchão. Ouviu-se um som de susto a sair da boca da mulher, tentou levantar a cabeça onde se encontrava a língua violadora, sem qualquer êxito, depois de um segundo de negação, deixou-se ficar para trás. Ouviam-se pequenos gemidos, levava muitas vezes as mãos à cara, o corpo, por vezes, estremecia, e a língua não parava. Penso na imagem de uma escavadora, é a mais fiel imagem que poderia dar. O corpo deitado parou de transpirar no momento em que se contorceu todo. E aí, depois do orgasmo fingido ou sentido, duas bocas puderam beijar-se na crença que ainda seria possível dar um toque de romantismo ao que tinha acabado de acontecer. Não falaram, a mulher voltou-se para adormecer novamente agora com um novo odor no quarto. A dona da língua foi para a sala com um ar de satisfação, parecia-lhe agora que o peito estava liberto e poderia novamente respirar. Enrolou um charro, e sentou-me na escuridão pontiaguda da varanda. Depois algo aconteceu: derramou num choro compulsivo, atirou metade do charro fora e saiu de casa. Bateu com a porta como se quisesse que todos no prédio ouvissem.

Na caixa de correio deixou um bilhete onde se podia ler:

Pensava que o peso que me tomava a respiração era necessidade de ti, era o Amor a querer ir de encontro a nós. Enganei-me. O peso era o sinal que não consigo mais. Preciso de voar para longe. Talvez acredites que te ame, talvez não queiras acreditar. Talvez não tenhamos sido nada, talvez tenhamos sido tudo. Adeus.

7 comentários:

oldmirror disse...

Eu quase senti, quase.

Francesca Lambruscco disse...

Um quase, muitas vezes, pode ser tanto.

Obrigada pela visita.

:)

oldmirror disse...

Não é uma visita, é uma presença. Alguém que entrou e...ficará por uns tempos. Any room to rent?

Francesca Lambruscco disse...

"por uns tempos" parece-me pouco.

Nada se aluga aqui.

Apenas podes permanecer ou não.

Gostava que escolhesses a primeira escolha.

oldmirror disse...

Fico. Trago poucas coisas, ocupo pouco espaço, fico aqui sentado neste canto, para mim está bom

Francesca Lambruscco disse...

:)

jasmim disse...

delicioso